quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

De Alma Lavada

O Canadá é um laboratório de raças, como já comentei, o país às voltas com a diversidade. É gente dos quatro cantos e curvas do mundo desembarcando aqui pra formar este mosaico social, e isto faz o corriqueiro muitas vezes incomum, como por exemplo, na cena de um certo cidadão que eu encontro no banheiro do escritório realizando sua cerimônia particular do lava-pés na pia...

Popularizada por Jesus, que num exemplo de humildade tomou bacia, água e toalha após a ceia final e lavou os pés dos discípulos, este ato era sinônimo de gentileza para com os visitantes naquela época, já que as viagens eram longas, as pessoas usavam sandálias, e as vias não eram pavimentadas. Assim, a primeira coisa que o anfitrião oferecia era o lava-pés, que era comumente realizado pelo cervo menor graduado da casa, daí o símbolo da humildade de Jesus ao tomar para sí tal tarefa. Na Índia já tinhamos esta cerimônia, mas com o sentido de purificação antes de qualquer ritual de oferenda ou adoração, e o ato simbólico de lavar os pés representa ainda hoje a purificação de todo o corpo e alma – na falta de um banho, um aconchegante lava-pés!

Mas vamos ao meu amigo do banheiro... Aqui no prédio onde trabalho não há banheiro individual por escritório, temos um andar com umas 12 salas, dentre elas consultórios, seguradoras, orgãos do governo, etc., e um banheiro masculine serve todo o andar. Assim, não raramente eu entro no banheiro por volta das 10:30 e encontro meu amigo descalço pisando sobre seu par de tênis, e com um dos pés dentro de uma das 3 pias (ufa, ainda bem que são 3...), lavando-o cuidadosamente. Quando nota minha presença, ele meio cabisbaixo me desfere um olhar meio que sem jeito, como quem tenta se esconder por entre a vasta sombrancelha, mas segue firme seu trabalho.

Na primeira vez, eu julguei de forma implacável: sujeitinho sujo... Como pode ser tão porco! Mas tomei a liberdade de analisar melhor a partir da segunda oportunidade, e notei que ele de certa forma se despia dos pertences de bolso, expondo uma outra parte de sua vida sobre a pia: um celular simples, papéis rascunhados, algumas moedas, e um cartão telefônico de chamadas internacionais... Então eu arrependido, repensei: talvez ele só tenha esta oportunidade durante todo o dia pra “limpar-se”... Sua face imigrante estava mais que confirmada através dos detalhes da cena, e eu já não sabia mais se ele era sujo ou coitado. Lembrei então da cerimônia do lava-pés, e pensei que talvez fosse a única forma dele se sentir banhado, após longas viagens por esta selva de pedras em busca de emprego, abrigo, ou alguma coisa qualquer que fizesse real a promessa que lhe fez desembarcar aqui.

Cheguei em casa, e durante meu banho quentinho, tentei lavar minha podre e mesquinha capacidade de julgar, e agora me sinto feliz ao ir ao banheiro e encontrá-lo por lá em seu ritual.

2 comentários:

Anônimo disse...

E daí cara, td certo? Aqui é o Adilson!
Então, na verdade esses caras lavam os pés na pia por causa de motivos religiosos... antes de rezar virado pra meca eles tem que se "purificar", lavando mãos, pés e a cabeça (nuca, acho)...
E de resto? Td certo ai?
[]s
Adilson

Manoel disse...

De uma sensibilidade e respeito singulares esse seu post, embora eu confesse q viesse a ter o mesmo impulso inicial que o seu.